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Podemos socializar riscos e recompensas?


A crise do coronavírus pode ser a chance de mudar uma dinâmica que alimenta a desigualdade: socializamos riscos, mas privatizamos recompensas.


Nesta visão, governos investem, mas não criam estruturas que recompensariam esse investimento público. “Quando a economia volta a crescer, ignoramos os governos e deixamos as empresas absorver as recompensas”, aponta Mariana Mazzucato, economista e professora da University College London. Mudar essa dinâmica, poderia tornar a economia mais inclusiva e sustentável, segundo ela.


Mariana, autora de “The Value of Everything: Making and Taking in the Global Economy” e de “The Entrepreneurial State: Debunking Public vs. Private Sector Myths”, observa que nesta perspectiva, “apenas” as empresas criam valor; os governos simplesmente facilitam o processo e corrigem “falhas de mercado”. Ela publicou um artigo hoje, no The New York Times, o qual explica melhor. Traduzi e transcrevi abaixo:


Devemos redefinir o próprio conceito de valor. Ainda confundimos preço com valor – e essa confusão leva à desigualdade e distorce o papel do setor público.


O nosso entendimento do que significa valor veio dos economistas e dos formuladores de políticas que o veem como uma troca: essencialmente, apenas algo que tenha preço é valioso. Essa abordagem supervaloriza bens e serviços precificados – que, por sua vez, compõe o produto interno bruto de um país, o motor das políticas públicas. Isso tem efeitos perversos. Uma mina de carvão que joga carbono na atmosfera aumenta o PIB e, mesmo assim, é atribuído valor à ela. (A poluição causada não é levada em consideração.) Mas os cuidados prestados aos filhos pelos pais não são precificados e, portanto, não são valorados.


Pessoas que ganham muito dinheiro parecem ser muito “produtivas”. Em 2009, Lloyd Blankfein, executivo-chefe da Goldman Sachs, afirmou que os funcionários do banco estavam “entre aqueles mais produtivos do mundo”. Ele afirmou isso um ano após a crise financeira de 2008 e um ano após esse grupo financeiro ter recebido US$ 10 bilhões do governo.


Claramente, mensurar o valor em função do preço ou pagamento, não é a melhor forma. Além disso, governos criam valor todos os dias, dos quais cidadãos e empresas se beneficiam. Eles se beneficiam de estruturas “básicas”, como estradas, educação e outros bens e serviços essenciais, mas também das tecnologias que moldam nossa economia.


O financiamento público para pesquisas e desenvolvimento nos ajudou a inovar, como a tecnologia GPS que viabiliza o Uber e a internet que torna possível o Google. O mesmo se aplica a muitos medicamentos de grande sucesso, que receberam do governo financiamentos de alto risco para pesquisas, e também fontes de energia renovável, como solar e eólica, que foram financiadas pelos contribuintes.


É por isso que, algo como dividendos para os cidadãos – onde os cidadãos possuem ações em um fundo vinculado à riqueza nacional – transformaria a participação do governo e criaria uma economia mais equitativa. Dando à população uma participação direta no valor que um país produz, ajudaria a estabelecer um sistema melhor: investimentos públicos para empresas e pesquisas também produziriam recompensas para os cidadãos. Isso ajudaria a reduzir a desigualdade – e socializar riscos e recompensas.


Desde 1982, por exemplo, o Alasca paga dividendos para seus cidadãos através do seu Fundo Permanente à base de petróleo, algo como um “fundo social de riqueza”. O Alasca está entre os mais igualitários do país. Na Califórnia, o governador Gavin Newsom exigiu “dividendos para dados” a serem pagos aos cidadãos pelo uso de suas informações pessoais – adequado para um estado onde bilionários tecnológicos vivem e que não poderiam faturar sem os investimentos públicos.


Os dividendos aos cidadãos (às vezes chamado de “fundo soberano de riqueza” ou de “fundo de riqueza dos cidadãos” ou de “fundo público de riqueza”) é uma maneira de reequilibrar a economia. Quando o governo investe em empresas privadas ou empresta-lhes fundos públicos, deve estruturar esses aportes para que os interesses públicos sejam protegidos e os ganhos sejam proporcionais aos riscos. Os cidadãos podem ter participações acionárias em empresas que recebem apoio governamental de alto risco, como aquelas que recebem incentivos como parte da recuperação da crise do coronavírus.


Não é um conceito novo. Durante a Depressão, o governo dos EUA teve participações acionárias em empresas por meio da Reconstruction Finance Corporation, uma agência governamental que ajudou a financiar o New Deal.


Isso seria socialismo? Não – é simplesmente admitir que o governo, sendo investidor, pode se beneficiar por pensar mais como um capitalista de risco em torno de objetivos sociais. Em vez de culpar o governo por maus investimentos, a verdadeira questão é como garantir que o país se beneficie dos bons investimentos.


Por exemplo, durante o governo Obama, o Departamento de Energia fez vários investimentos em empresas verdes, como US$ 500 milhões em empréstimos à empresa solar Solyndra e US$ 465 milhões à Tesla. Quando a Solyndra faliu, os contribuintes arcaram com a conta. Mas quando a Tesla despontou, os contribuintes não foram recompensados.


O governo também precisa ter uma pegada mais forte de negociação para garantir que o crescimento econômico reverta para seus cidadãos. Empréstimos devem vir com condicionamentos, alinhando o comportamento corporativo com as metas da sociedade. Hoje, isso significa que empresas que recebem socorro em função do coronavírus poderiam reter seus funcionários ou comprometer-se com reduções de emissões.


Na Dinamarca, o governo ofereceu às empresas uma remuneração salarial generosa com a condição de que não fizessem demissões por razões econômicas; também se recusou a resgatar empresas em paraísos fiscais e proibiu o uso de fundos para dividendos e recompras de ações. Na França, os aportes às companhias aéreas estavam atrelados ao atingimento de metas ambiciosas de emissões por parte delas.


Finalmente, o preço deve ser colocado a serviço do valor, e não o contrário. A corrida pela vacina contra o coronavírus oferece boa oportunidade. Para começar, o preço que os cidadãos pagam pelos produtos farmacêuticos não reflete a enorme contribuição pública – em 2019, foram mais de US$ 40 bilhões – para a pesquisa médica. A Gilead está cobrando US$ 3.120 pelo tratamento com o medicamento remdesivir para a COVID-19, o qual foi desenvolvido graças a um valor concedido de US$ 70 milhões dos contribuintes americanos.


O preço das vacinas para a COVID-19 deve levar em conta as parcerias público-privadas que estão desenvolvendo pesquisas financiadas pelo público e garantir que as patentes destas vacinas sejam compartilhadas em prol comum e que estejam universalmente disponíveis e gratuitas.


Para realmente socializar riscos e recompensas e ter um impacto na desigualdade, precisamos começar com perguntas simples: o que é valor e como ele é criado? Como podemos socializar riscos e recompensas?


É essencial reconhecer que não são apenas as empresas que criam valor. São também trabalhadores e instituições públicas. Assim, será mais fácil garantir que os esforços de todos sejam devidamente remunerados e que as recompensas do crescimento econômico sejam distribuídas de forma mais equitativa.


Texto originalmente publicado no The New York Times

Crédito da imagem da capa: Thomas Pullin.


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